Perna Cabeluda e a lenda do Recife
21/12/2025, 15:00:47A lenda que ganhou o cinema
A lenda saiu das páginas policiais para a tela do cinema com o filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, "O Agente Secreto". Era noite no Recife da década de 1970, uma sombra se projeta nos muros. Não parece gente, não tem corpo ou rosto, mas parte de alguém. A Perna Cabeluda não caminha, ela aparece sem aviso, ataca e assusta, provocando uma histeria coletiva e logo desaparecendo.
O mistério se espalha
O mistério da Perna Cabeluda ganhou as páginas dos jornais recifenses em 1975 e, mais recentemente, nos cinemas através do filme "O Agente Secreto", do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho.
O nascimento de uma lenda
O jornalista e escritor Raimundo Carrero dispensa o título de “pai” da Perna Cabeluda. Em entrevista ao Portal iG, Carrero conta que a lenda nasceu a partir do relato de um homem que apareceu na redação do jornal onde trabalhava, o Diário de Pernambuco. “Eu vi uma pessoa com a perna machucada e perguntei: ‘o que foi isso?’ Ele me respondeu que tinha sido a Perna Cabeluda. Eu quis saber como era essa perna e ele disse que não sabia, que não tinha visto, só sentiu o golpe”, relembra.
As repercussões da história
A história foi publicada na coluna policial, a qual o escritor era responsável. “Eu escrevi como se fosse um folheto de Cordel”, frisa. Os textos foram publicados na edição do domingo. À época, as pessoas chegaram a dizer que Raimundo Carrero estava fazendo literatura no jornal. “É a realidade”, retrucava o jornalista.
“Após a publicação, recebi vários telefonemas. Algumas pessoas diziam que eu estava mentindo, que eu inventei. Outros jornalistas começaram a procurar pela história, iam (sic) ao pronto-socorro. Foi um pandemônio, uma maluquice. As pessoas começaram a achar que era verdade, embora, na minha cabeça, eu achava que era só uma criação, um personagem”, disse à reportagem.
O contexto da Ditadura Militar
O Recife dos anos 1970 estava inserido na Ditadura Militar brasileira, período marcado por repressão política, censura e controle social, como explica o professor de história e especialista em Políticas Sociais, José Carlos Mardock. Foi nesse contexto político e social que surgiu a Perna Cabeluda.
“O clima de medo e repressão favoreceu a circulação de rumores e narrativas orais. A censura à imprensa estimulava explicações simbólicas para a violência e o perigo urbano. A lenda expressava o medo do 'invisível' que rondava a cidade à noite”, destaca Mardock. A lenda funcionava como metáfora das tensões sociais do período.
Estratégias de escrita sob censura
Na tentativa de driblar a censura imposta pelo regime ditatorial, Raimundo Carrero mudou a forma de escrever. “Ao invés de escrever comumente, eu escrevia como cordelista. Contando uma história fantasiosa e terminava em uma espécie de lenda”, conta Carrero.
“Mas, é claro que a censura impediu muita gente de escrever. Então, eu aproveitava de qualquer maneira a cultura popular de Pernambuco e do Brasil. Era o melhor caminho. Escrever como folheto de cordel possibilitava, naturalmente, a publicação sem dificuldade, não caía na censura”.
A oralidade e a resistência da lenda
O rádio foi um grande divulgador da história. Entretanto, é na oralidade que ela resiste ao tempo. Para Mardock, as lendas reforçam identidades locais e circulam facilmente mediante a oralidade, como também pelas redes sociais. “No Brasil, a tradição oral fortalece essas narrativas”, ressalta.
As lendas, conforme o historiador, são registros simbólicos da memória social. “Elas revelam sentimentos coletivos como medo, insegurança e repressão. No caso do Recife, ajudam a entender o impacto da ditadura no cotidiano popular”, analisa.
A presença da lenda no imaginário pernambucano
Para Raimundo Carrero a lenda está presente no imaginário pernambucano, principalmente, para quem nasceu no Recife. “Foi uma coisa que ultrapassou toda a imaginação do próprio criador, ganhou as rádios e está aí até hoje”.
Por questões de saúde, Carrero ainda não assistiu ao “Agente Secreto”, mas espera vê-lo em breve. “Quando eu ver, a gente volta a conversar”, finalizou a entrevista.